Após atravessarem as portas do aeroporto, inicia-se a verdadeira jornada afegã. Ao deixarem para trás seus lares e suas vidas no Afeganistão, passando um período nos países vizinhos planejando, com esperança, uma nova vida e finalmente obtendo o aguardado visto humanitário brasileiro, a chegada ao Brasil traz consigo tanto a ansiedade pelo tão esperado recomeço quanto o caos enfrentado no aeroporto de Guarulhos.

No Terminal 2, todos aguardam por um abrigo. Quando finalmente o aeroporto deixa de ser lar e caminham rumo aos alojamentos, é quando podem começar, enfim, a vislumbrar seu futuro. Enquanto alguns pretendem se estabelecer no país a partir daí, outros – a maioria dos afegãos – já planejam seu próximo destino, tendo o Brasil apenas como uma parada em sua trajetória. Antes de finalizar a nossa viagem pela longa jornada desses refugiados afegãos, vamos conhecer algumas das possibilidades que eles seguem e, claro, descobrir qual rumo tomaram Aalim, Azad, Hadi e Mohammed. 

Trilhe os diferentes caminhos desta trajetória:

Vivendo no abrigo

Milhares de refugiados afegãos já passaram por Cumbica e grande parte deles ficaram no local aguardando a liberação de vagas nos abrigos espalhados por São Paulo. Hoje, por exemplo, 11 abrigos estão cadastrados para receber esses migrantes. 

Ilustração: Giovanna Carvalho


Azad é um dos refugiados que ficou no abrigo por um longo período. Infelizmente, eu não recebi notícias dele desde o meio de março. Mas, na última vez em que tive contato com ele por mensagem, no início de março deste ano, ele ainda estava no alojamento. Após mais de 20 dias no aeroporto, Azad finalmente conseguiu uma vaga no final de janeiro deste ano. O Posto de Atendimento ao Migrante (PAAHM) o comunicou sobre a notícia e acionou os responsáveis da prefeitura de Guarulhos para  levá-lo ao abrigo localizado na cidade – que, a pedido dele, não terá o nome revelado nesta reportagem . 

Logo quando eu perguntei o que o afegão estava achando do local, ele me respondeu: “É bom, legal”. Pouco tempo depois, ele revela que no dia anterior havia ido ao aeroporto fazer uma visita: “Eu fui porque eu sinto falta do ambiente do aeroporto”, escreveu a mensagem acompanhada por um emoji de risada. Em seguida, consegui entender a falta que ele sentiu. O rapaz me disse que passava todos os dias no abrigo e que, de vez em quando, ia a um parque próximo do local, mas que não havia muito o que se fazer no dia a dia. “As coisas mais importantes no dia é comer três refeições e assistir alguns filmes”, ele disse. 

Diferente de Azad, Aalim e Mohammed não foram enviados para um abrigo cadastrado pelo PAAHM. Foram selecionados para um projeto da ONG Planeta de Todos, em parceria com a Organização de Resgate de Refugiados Afegãos (ARRO). O projeto consiste em um programa voltado para afegãos solteiros, que concede abrigo a eles na cidade de Ribeirão Preto, em São Paulo. Os dois agora estão morando no interior do estado, junto aos outros cinco selecionados para o programa. No total, sete afegãos foram escolhidos a partir de entrevistas. 

Aalim e Mohammed chegaram na cidade no dia 5 de março e, lá, encontraram uma moradia completa, toda equipada com o que precisam para viver. Agora, fazem parte de suas rotinas diversas aulas, como de português, cultura brasileira, legislação brasileira e muitas outras. A ideia do projeto é proporcionar uma integração completa para esses afegãos durante seis meses a um ano para, no final, serem contratados pela empresa Mais Todos – dona da ONG Planeta de Todos.

Tanto Azad quanto Aalim foram acolhidos e agora podem finalmente seguir suas vidas e construir um futuro no Brasil e, até mesmo, fora dele.

Vida no Brasil

Desde a chegada desses afegãos ao Brasil em 2022, mais de 11.086 entradas de afegãos já foram registradas. Desse total, não há dados precisos que informem a quantidade de pessoas dessa nacionalidade que estejam vivendo no país. Porém, desde então, vemos um cenário se desdobrando no Brasil: o surgimento de uma comunidade afegã. 

Hoje, um dos integrantes dessa comunidade é Shabir Niazi. O afegão de 22 anos chegou ao Brasil em 11 de novembro de 2022, após passar um ano e meio no Irã. Aqui, ficou um mês no aeroporto antes de passar pelos dois abrigos em que viveu. Hoje, parte de sua família ainda está no Afeganistão, em solo brasileiro permanece ele e o irmão. 

Aqui, precisou recomeçar praticamente do zero. O Talibã bloqueia a conta de todos os afegãos que saem do país, deixando-os sem dinheiro o suficiente. Atualmente, Shabir trabalha por conta própria junto a seu irmão em diversos negócios online, e está em sua segunda casa no Brasil. Mas, seu feito mais notável no país tropical é a criação da  Organização de Resgate de Refugiados Afegãos (ARRO). Junto a Ana Paula Oliveira e Mariana Gerbassi – apresentadas antes nessa reportagem – e outras pessoas, fundou uma organização com o propósito de ajudar os refugiados afegãos que chegam ao Brasil e os que querem se estabelecer no país.

Shabir estava no primeiro semestre de Psicologia quando precisou sair do Afeganistão pela tomada do Talibã. Hoje, ele pensa em voltar para a universidade, mas em outro curso: Direito. (Crédito: Banco Pessoal)

Trajetória de Shabir desde sua chegada ao Brasil:


O motivo da decisão de ficar no Brasil? Shabir nem hesita na resposta: “Aqui, nós temos direitos. Aqui, nós temos um documento. Nós temos uma voz para falar, para dialogar com o governo”. Ele faz uma lista de direitos e deveres que o Brasil o proporcionou.

“Aqui eu posso tirar passaporte, eu posso comprar uma casa, eu posso abrir uma empresa, eu posso alugar uma casa facilmente e eu posso abrir uma conta bancária.”

Para ele, essas são as razões pelas quais o fizeram ficar em território brasileiro. O jovem ainda completa afirmando que em outros países como os Estados Unidos é muito mais difícil de se viver. “Eu acredito que esse é o país das oportunidades”, ele diz. 

Mas, como tudo na vida, existem as dificuldades. Para ele, a maior de todas é a questão da língua – o Brasil e o Afeganistão possuem idiomas completamente distintos, tornando o aprendizado árduo para o afegão. No entanto, Shabir já aparenta ser metade brasileiro: fala super bem português, com um ano e meio de estadia no país. Além disso, outra dificuldade mencionada por ele é a burocracia para dar continuidade nos estudos da faculdade que cursava antes de chegar no Brasil. O rapaz explica: “O Afeganistão não possui uma relação diplomática com o Brasil. Nós não temos uma embaixada para validar nossos documentos, então é bem complicado para os afegãos”. 

A saudades do país também é algo rotineiro na vida de Shabir e dos demais afegãos que moram aqui. Ele enfatiza que sente falta do seu país, sua família, seus amigos e sua rotina antiga. Para ele, ser imigrante é uma tarefa sempre difícil, apesar de tudo: “Quando você se torna um imigrante, você perde tudo o que tem. Não é sobre o dinheiro”. Assim, perguntei se ele pensa em ir para outro país no futuro e ele negou. “Por agora, o Brasil está ótimo. Eu não vou virar imigrante de novo, é muito dificil”. Sobre o Brasil, o afegão dispara somente elogios. Quando falamos em um futuro aqui, ele diz que sim: “Com certeza”. 

Para ele, os afegãos que chegam ao Brasil para depois ir para outros países, devem repensar essa ideia. “Eles precisam ficar um pouco mais para entender as oportunidades que existem aqui”. O afegão ainda complementa dizendo que os refugiados, quando chegam ao Brasil, não sabem nada sobre o país: “No aeroporto, eles falam que o Brasil é uma máfia”. Somado a isso, ele revela que nem os abrigos, muitas vezes, ajudam a acabar com essa visão distorcida do país, dizendo que não são passadas muitas informações no local: “Eles colocam os afegãos nos abrigos para comer e dormir somente”. 

No entanto, apesar das dificuldades de viver em território brasileiro, Shabir acredita que a terra é um lugar ótimo para se viver e que as pessoas deveriam ter consciência disso. Assim, aos poucos, uma comunidade afegã vem se formando em nosso país.

Travessia Migratória

A maioria dos afegãos que chegam ao Brasil não ficam muito tempo aqui e logo partem para outros países – especialmente os Estados Unidos. Os motivos para o Brasil, cuja  política migratória é apelidada de “portas abertas”, estar se tornando o passe de entrada para o caminho ao norte às Américas com destino aos EUA, são muitos e  variados. Cada nacionalidade possui uma motivação diferente. Mas, quando falamos dos afegãos, os principais motivadores são a diferença cultural entre os países, além do desconhecimento que possuem sobre a vida e as oportunidades que o Brasil oferece – deixando-se levar pelo ideal do “sonho americano”, mesmo que tenha de enfrentar uma travessia quase que mortal para alcançá-lo. 

Hadi, o último que nos faltava saber qual caminho escolheu, embarcou na travessia mortal para chegar nos EUA – a maior economia do planeta e o destino preferido por refugiados do mundo inteiro. Ele me contou que conseguiu, ainda quando estava no Paquistão, ingressar em um programa para refugiados nos Estados Unidos, mas que o processo estava muito lento. Então, conseguiu o visto humanitário e voou rumo ao Brasil. Porém, três fatores foram determinantes para a sua decisão de não permanecer no país e seguir em direção às terras estadunidenses:

Ilustração: Giovanna Carvalho

Quando chegou ao Brasil em outubro de 2023, no aeroporto, Hadi estava planejando ficar por aqui, apesar das dúvidas em relação aos EUA. “Eu não estava mentalmente preparado para realizar a travessia. Quero dizer, são muitos países. Mas, eu pensei bem e falei ‘vamos, vai ser como uma descoberta’”, ele revela. Então, em 25 de novembro de 2023, o rapaz, junto a um grupo de 35 afegãos formado no aeroporto, iniciou a sua trajetória, que viria a durar 29 dias, passando por situações extremas de saúde, segurança e golpes. Assim, ele percorreu nove países das Américas rumo ao México, último país que se estabeleceu temporariamente antes de chegar aos Estados Unidos.


Depois de muitas emoções e desafios durante a trajetória, Hadi finalmente alcançou o seu objetivo: chegar aos Estados Unidos. Porém, suas expectativas sobre a vida na nação mais poderosa do mundo não estavam altas: “Sei que será difícil”. O afegão de 32 anos comenta que entende que seus problemas não acabam quando você cruza a fronteira dos EUA e que, a partir de então, haverá uma nova onda de preocupações.

“As dificuldades que tive durante minha jornada até aqui me tornaram mais sensato para não ficar muito animado em ir para os EUA, apesar de estar me reunindo com a minha noiva e de ser a terra dos sonhos para muitas pessoas no mundo.”

Enfim, sobre uma futura volta para o seu país natal, Hadi diz que isso não será uma escolha unilateral, pois agora estará junto de sua noiva, e que as decisões serão tomadas em conjunto. No entanto, o afegão afirma que a saudade de sua terra nunca vai deixar de existir. “Eu morei lá por 30 anos, moldei minha identidade lá. Não sinto muita saudade de casa, mas sinto falta do meu país”. Agora, ele afirma que está pronto para construir uma vida em seu novo país.

Hadi em meio a sua trajetória rumo ao México, em dezembro passado. (Crédito: Arquivo pessoal)

Com uma mistura de expectativas moderadas e um coração repleto de memórias de sua terra natal, Hadi encara os Estados Unidos não como o fim de uma jornada, mas como o início de um novo capítulo repleto de desafios e oportunidades. Sabendo que a vida além da fronteira traz consigo suas próprias adversidades, ele se prepara para enfrentá-las com a mesma determinação que o trouxe até aqui.

O ponto final...

Assim, finalizamos a nossa viagem pela jornada que os refugiados afegãos embarcaram há mais de dois anos. Entre todos os desafios que se possa imaginar, eles continuam provando que a busca pela paz e a segurança possuem um preço, às vezes, muito alto a se pagar. E, para superar os percalços desse longo caminho, é necessário ter muita resiliência. Prova viva disso é Aalim, Azad, Hadi e Mohammed, além dos milhares de afegãos que formam a diáspora afegã, não só no Brasil mas no mundo inteiro.

Sobre Os moradores do Terminal 2

O projeto é uma homenagem às trajetórias dos afegãos que chegaram ao Brasil e encontraram abrigo temporário no Aeroporto Internacional de Guarulhos. Enfrentando a incerteza e a adaptação à vida em um espaço público, eles personificam a resiliência e a determinação em construir um novo começo em solo brasileiro.

Este Trabalho de Conclusão de Curso, para o curso de Jornalismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie, foi pensado e produzido por Giovanna Carvalho, orientada pelo Prof. Dr. Hugo Harris. O trabalho  contou com os serviços de Gabriel Toledo, responsável pela criação deste site, e de Livian Amaral, responsável pela edição dos vídeos incorporados.